No meio literário circula uma anedota acerca do primeiro encontro entre
João Guimarães Rosa e o poeta
Manoel de Barros, em junho de 1953. Encantado com a forma original como o poeta se expressava, Rosa anotava o que ele dizia sobre os pássaros, a paisagem e a vida pantaneira em sua caderneta de campo. A certa altura, incomodado com o aquele anotar constante,
Barros passou a dar respostas monossilábicas à curiosidade do escritor mineiro. Depois que Rosa foi embora, o poeta virou-se para um interlocutor e disse:
— Quando senti que ele me especulava, me empedrei.
Se isto ocorreu de fato, não se sabe. Provavelmente não, uma vez que, longe da desconfiança,
Manoel de Barros é um fã incondicional do autor de
Grande Sertão: Veredas, a quem acompanhou até Corumbá numa viagem de vapor, “por impulso de admiração”. Ao escrever certa vez sobre essa viagem,
Barros afirmou: “Nossa conversa era desse feitio. Ele inventava coisas de Cordisburgo. Eu inventava coisas do Pantanal.” E acrescentou: “Eu fabricava coragem para puxar uma prosa com aquele João.”
Para
Rosa, além do cuidado especial com o texto e a constante leitura, o manancial inspirador de sua literatura brotava de encontros e viagens como essa. No encontro com o outro, o confronto com sua personalidade singular gerava “causos” e anedotas. O interesse de
Rosa por aquele universo rural chegava a espantar os que o cercavam. Certa feita,
Manuelzão — vaqueiro amigo e personagem de suas histórias — disse, assombrado, que o escritor afirmava querer entrar dentro de um bovino para captar a essência daquele ruminar.
De acordo com aqueles que conviveram com ele,
Rosa era movido por duas forças: a palavra e uma inquietação metafísica, mais mística do que religiosa. Médico de formação, diplomata fluente em 13 idiomas e extremamente erudito, ele era, apesar de tudo, bastante simples no convívio. Tinha suas manias e cismas e era dado a conversas com qualquer pessoa, em especial com aquelas mais humildes, cujas formas de expressão e universo cognitivo lhes instigavam a imaginação, inspirando-o para suas “estórias”.
— Em 1952,
Rosa acompanhou um grupo de vaqueiros que levava uma boiada entre duas fazendas, e anotava absolutamente tudo em suas famosas cadernetas, dos nomes de pássaros às falas dos vaqueiros. Ele fazia perguntas de cunho filosófico àqueles homens simples e anotava cuidadosamente suas respostas — conta
Izabel Aleixo, editora da
Nova Fronteira e especialista na obra de
Guimarães Rosa. — Ele tinha verdadeiro fascínio por aquele mundo, de onde tirou o material para a sua obra.
José Luís Guimarães Rosa, irmão do escritor, lembra, emocionado, sua devoção às palavras:
— A expressão mágica para meu irmão era “ave palavra”. Sempre achei que acima do roteiro de suas histórias estava a palavra. A palavra prevalecia. Há contos em que ele vem descrevendo e, de repente, como que fugindo à narrativa, pára numa vírgula e, entre vírgulas, põe palavras avulsas para prestigiá-las.
José Luís lembra ainda que outro aspecto crucial da vida de
Joãozito, como os familiares o chamavam, era sua angústia em relação ao tempo, sobretudo depois que o escritor deparou-se com a previsão que determinava que ele morreria logo após uma grande festa em sua homenagem. Seguro da precisão daquela profecia,
Rosa adiou a cerimônia de posse na
Academia Brasileira de Letras (
ABL) por vários anos.
— A profecia foi um calvário para ele — diz
José Luís. — Não sei quem fez, talvez uma cigana lendo a sua mão. Isso influiu bastante, porque ele era muito crente. Acreditava no imponderável, mas coisas divinas, nas profecias.
Após esse episódio, lembra o irmão, o tempo para
Rosa encurtou. Ele pressentia que o fim estava próximo e se angustiava com a possibilidade de não terminar tudo o que estava escrevendo. Por isso, trabalhava horas a fio todos os dias, religiosamente. Por fim, a profecia se cumpriu: três dias após a posse na
ABL,
Rosa morreu.
— A última vez que fui visitá-lo no
Itamaraty, ao entrar em seu gabinete o vi no meio da sala, com um terço na mão, rezando — afirma o irmão.
— Percebi sua angústia e compreendi que deveria alegrá-lo. Então me dirigi a ele e o abracei e conversei coisas amenas para reintegrá-lo à sua habitual alegria. Mas nem todas as profecias que atravessaram a vida de Rosa tinham um teor trágico. Quando estava no início do ofício de escritor, enviou, com pseudônimo, os contos de Sagarana a um concurso no qual ficou em segundo lugar. No entanto, Graciliano Ramos, que participava do júri, ficou impressionado com as histórias e previu que aquele escritor estremeceria a literatura brasileira.
Agnes Guimarães Rosa do Amaral, uma de suas filhas, conta sobre a fase inicial do namoro de Rosa e sua mãe, Lígia Cabral Pena, a dona Lili, primeira mulher do escritor:— Ele fazia medicina e conheceu minha mãe, que era estudante. Todos os dias ia à Escola Normal na hora da saída e, ao se encontrar com ela, dizia: “Que coincidência!”. E a cena se repetiu tanto, a ponto de as colegas de minha mãe afirmarem ao avistá-lo se aproximando: “A coincidência já chegou.”
Agnes diz que a emoção que o personagem Miguilim sentiu ao usar óculos pela primeira vez aconteceu de fato com seu pai, cujos primeiros óculos foram comprados de um mascate, quando ele ela menino. Talvez seja o milagre da nitidez daquela experiência que tenha levado Rosa a expressar o desejo de ser enterrado com seus óculos.
(texto publicado originalmente jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, edição comemorativa de Guimarães Rosa, em 11 de março de 2006).