sábado, 8 de dezembro de 2007

O amor no balcão



A cidade, como dizia Ezra Park, não é apenas um aglomerado de prédios e ruas, mas sobretudo os sonhos das pessoas que nela habitam. Esse imaginário citadino é algo que vai se transformando constantemente, sob influência dos mais diversos fatores. Para alguns, as mudanças aparecem como uma descaracterização irremediável de algum modelo nostálgico e ideal, que toma forma mais no imaginário do que na realidade concreta, tangido por lembranças, desejos e fantasias, que configuram, ou transfiguram, noções de uma urbanidade ideal, corroída pela voracidade do tempo, que a tudo transforma.



Assim, velhos sobrados dão lugar a condomínios auto-suficientes e distantes da vida nas calçadas; velhos pés-sujos se transformam em modernos botecos, com suas chopeiras importadas de São Paulo; e casas de pasto portuguesas, do início do século passado, simplesmente desaparecem, como a Lisboeta, o Penafiel, o Bico Doce e tantos outras. É inevitável uma certa melancolia ao presenciar esses fenômenos urbanos incontroláveis e incontornáveis, pois essas transformações forçosamente nos lembram de nossa própria finitude, configurando aí um elemento psíquico-emocional poderoso, pois sabemos que vamos desaparecer tanto quanto esses velhos sobrados e suas maneiras de ser e estar na cidade.



Mas há também aqueles cuja nostalgia traz elementos patológicos e fetichistas. Idealizam um mundo que não viveram, mas do qual sentem uma saudade terminal e se engajam em exercícios retóricos preservacionistas, muitas culminando em lágrimas emocionadas diante do que acreditam ser o último remanescente de um mundo belo, porém inexistente. Eu mesmo, meus amigos, devo confessar que me encaixo nesse perfil sentimental, misturando memória e desejo, como dizia T. S. Eliot, em minha noção de passado.



O problema desses mergulhos um tanto sentimentalóides é que muitas vezes deixam a visão opaca e jogam sombra sobre as coisas do presente. Ao nos deslocarmos para o passado, esquecemos, por assim dizer, o presente e as coisas efervescentes e interessantes que ocorrem no aqui-agora. “Essa ocorrência silenciosa”, como dizia meu querido Manduka, ao me descrever o sentido do adágio popular: “pega pra capar!”.



E uma das coisas que permanecem nas grandes cidades, como um emblema de uma identidade urbana e cosmopolita, são as infinitas formas que se configuram os impulsos boêmios. E, no Rio de Janeiro, o botequim é o cenário privilegiado dessas “ocorrências silenciosas”... Bem, na verdade, quase nunca silenciosas, mas vale a licença poética para encaixar o adágio Mandukiano.



Sim, é triste ver, por exemplo, o velho pé-sujo Belmonte se transformar num arremedo do que foi no passado. Ver o suculento sanduíche de carne assada dar lugar a salgadinhos uniformes, produzidos em escala industrial fordista. Mas esses são meus olhos conservadores e, afinal, quem sou eu para dizer à multidão de jovens boêmios que se amontoam em seus balcões modernizados que eles estão errados, são alienados e inconseqüentes em suas opções de lazer etílico? Seria muita presunção, não é mesmo? Mas, por outro lado, posso lamentar, aqui no meu cantinho, a perda de certos modos e costumes de viver a boemia.



Mas também festejar certas mudanças, como ventos de boa renovação. Uma delas é a presença cada vez mais constante e efervescente das mulheres nos botequins da cidade. Espaço tipicamente masculino, reduto em que lamuriávamos, entre um copo e outro, nossos amores fracassados, contando com a cumplicidade de nossos pares, capazes de entender a dor do desencontro com o sexo oposto, pois também tinham, em algum momento passado pelo calvário amoroso: “Mulher é o cão!”, dizíamos amargurados.



Agora, nessas ondas de mudanças, eis que são elas que invadem nosso pedaço, trazendo um hibridismo interessante ao outrora reduto exclusivo masculino. E com elas, o amor deixa as retóricas amarguradas das conversas de botequim, para se transformar em encontros potencialmente reais. Ei-las ao nosso lado, no balcão, brindando à vida! Pois então que se cheguem e sejam bem-vindas.

2 comentários:

Francine Esqueda disse...

demais...

Canto da Boca disse...

Penafiel, é uma das minhas cidades preferidas, estive lá no último final de semana de maio...
Rindo aqui. Vou voltar, com calma, tou escrevendo o 1° capítulo da minha tese. Haja leituras e pouco tempo.
;)