quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Guimarães Rosa: Casos e causos



No meio literário circula uma anedota acerca do primeiro encontro entre João Guimarães Rosa e o poeta Manoel de Barros, em junho de 1953. Encantado com a forma original como o poeta se expressava, Rosa anotava o que ele dizia sobre os pássaros, a paisagem e a vida pantaneira em sua caderneta de campo. A certa altura, incomodado com o aquele anotar constante, Barros passou a dar respostas monossilábicas à curiosidade do escritor mineiro. Depois que Rosa foi embora, o poeta virou-se para um interlocutor e disse:

— Quando senti que ele me especulava, me empedrei.

Se isto ocorreu de fato, não se sabe. Provavelmente não, uma vez que, longe da desconfiança, Manoel de Barros é um fã incondicional do autor de Grande Sertão: Veredas, a quem acompanhou até Corumbá numa viagem de vapor, “por impulso de admiração”. Ao escrever certa vez sobre essa viagem, Barros afirmou: “Nossa conversa era desse feitio. Ele inventava coisas de Cordisburgo. Eu inventava coisas do Pantanal.” E acrescentou: “Eu fabricava coragem para puxar uma prosa com aquele João.”

Para Rosa, além do cuidado especial com o texto e a constante leitura, o manancial inspirador de sua literatura brotava de encontros e viagens como essa. No encontro com o outro, o confronto com sua personalidade singular gerava “causos” e anedotas. O interesse de Rosa por aquele universo rural chegava a espantar os que o cercavam. Certa feita, Manuelzão — vaqueiro amigo e personagem de suas histórias — disse, assombrado, que o escritor afirmava querer entrar dentro de um bovino para captar a essência daquele ruminar.

De acordo com aqueles que conviveram com ele, Rosa era movido por duas forças: a palavra e uma inquietação metafísica, mais mística do que religiosa. Médico de formação, diplomata fluente em 13 idiomas e extremamente erudito, ele era, apesar de tudo, bastante simples no convívio. Tinha suas manias e cismas e era dado a conversas com qualquer pessoa, em especial com aquelas mais humildes, cujas formas de expressão e universo cognitivo lhes instigavam a imaginação, inspirando-o para suas “estórias”.

— Em 1952, Rosa acompanhou um grupo de vaqueiros que levava uma boiada entre duas fazendas, e anotava absolutamente tudo em suas famosas cadernetas, dos nomes de pássaros às falas dos vaqueiros. Ele fazia perguntas de cunho filosófico àqueles homens simples e anotava cuidadosamente suas respostas — conta Izabel Aleixo, editora da Nova Fronteira e especialista na obra de Guimarães Rosa. — Ele tinha verdadeiro fascínio por aquele mundo, de onde tirou o material para a sua obra.



José Luís Guimarães Rosa, irmão do escritor, lembra, emocionado, sua devoção às palavras:

— A expressão mágica para meu irmão era “ave palavra”. Sempre achei que acima do roteiro de suas histórias estava a palavra. A palavra prevalecia. Há contos em que ele vem descrevendo e, de repente, como que fugindo à narrativa, pára numa vírgula e, entre vírgulas, põe palavras avulsas para prestigiá-las.

José Luís lembra ainda que outro aspecto crucial da vida de Joãozito, como os familiares o chamavam, era sua angústia em relação ao tempo, sobretudo depois que o escritor deparou-se com a previsão que determinava que ele morreria logo após uma grande festa em sua homenagem. Seguro da precisão daquela profecia, Rosa adiou a cerimônia de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL) por vários anos.

— A profecia foi um calvário para ele — diz José Luís. — Não sei quem fez, talvez uma cigana lendo a sua mão. Isso influiu bastante, porque ele era muito crente. Acreditava no imponderável, mas coisas divinas, nas profecias.

Após esse episódio, lembra o irmão, o tempo para Rosa encurtou. Ele pressentia que o fim estava próximo e se angustiava com a possibilidade de não terminar tudo o que estava escrevendo. Por isso, trabalhava horas a fio todos os dias, religiosamente. Por fim, a profecia se cumpriu: três dias após a posse na ABL, Rosa morreu.

— A última vez que fui visitá-lo no Itamaraty, ao entrar em seu gabinete o vi no meio da sala, com um terço na mão, rezando — afirma o irmão. — Percebi sua angústia e compreendi que deveria alegrá-lo. Então me dirigi a ele e o abracei e conversei coisas amenas para reintegrá-lo à sua habitual alegria.

Mas nem todas as profecias que atravessaram a vida de Rosa tinham um teor trágico. Quando estava no início do ofício de escritor, enviou, com pseudônimo, os contos de Sagarana a um concurso no qual ficou em segundo lugar. No entanto, Graciliano Ramos, que participava do júri, ficou impressionado com as histórias e previu que aquele escritor estremeceria a literatura brasileira.

Agnes Guimarães Rosa do Amaral, uma de suas filhas, conta sobre a fase inicial do namoro de Rosa e sua mãe, Lígia Cabral Pena, a dona Lili, primeira mulher do escritor:— Ele fazia medicina e conheceu minha mãe, que era estudante. Todos os dias ia à Escola Normal na hora da saída e, ao se encontrar com ela, dizia: “Que coincidência!”. E a cena se repetiu tanto, a ponto de as colegas de minha mãe afirmarem ao avistá-lo se aproximando: “A coincidência já chegou.”

Agnes diz que a emoção que o personagem Miguilim sentiu ao usar óculos pela primeira vez aconteceu de fato com seu pai, cujos primeiros óculos foram comprados de um mascate, quando ele ela menino. Talvez seja o milagre da nitidez daquela experiência que tenha levado Rosa a expressar o desejo de ser enterrado com seus óculos.

(texto publicado originalmente jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, edição comemorativa de Guimarães Rosa, em 11 de março de 2006).

sábado, 8 de dezembro de 2007

O amor no balcão



A cidade, como dizia Ezra Park, não é apenas um aglomerado de prédios e ruas, mas sobretudo os sonhos das pessoas que nela habitam. Esse imaginário citadino é algo que vai se transformando constantemente, sob influência dos mais diversos fatores. Para alguns, as mudanças aparecem como uma descaracterização irremediável de algum modelo nostálgico e ideal, que toma forma mais no imaginário do que na realidade concreta, tangido por lembranças, desejos e fantasias, que configuram, ou transfiguram, noções de uma urbanidade ideal, corroída pela voracidade do tempo, que a tudo transforma.



Assim, velhos sobrados dão lugar a condomínios auto-suficientes e distantes da vida nas calçadas; velhos pés-sujos se transformam em modernos botecos, com suas chopeiras importadas de São Paulo; e casas de pasto portuguesas, do início do século passado, simplesmente desaparecem, como a Lisboeta, o Penafiel, o Bico Doce e tantos outras. É inevitável uma certa melancolia ao presenciar esses fenômenos urbanos incontroláveis e incontornáveis, pois essas transformações forçosamente nos lembram de nossa própria finitude, configurando aí um elemento psíquico-emocional poderoso, pois sabemos que vamos desaparecer tanto quanto esses velhos sobrados e suas maneiras de ser e estar na cidade.



Mas há também aqueles cuja nostalgia traz elementos patológicos e fetichistas. Idealizam um mundo que não viveram, mas do qual sentem uma saudade terminal e se engajam em exercícios retóricos preservacionistas, muitas culminando em lágrimas emocionadas diante do que acreditam ser o último remanescente de um mundo belo, porém inexistente. Eu mesmo, meus amigos, devo confessar que me encaixo nesse perfil sentimental, misturando memória e desejo, como dizia T. S. Eliot, em minha noção de passado.



O problema desses mergulhos um tanto sentimentalóides é que muitas vezes deixam a visão opaca e jogam sombra sobre as coisas do presente. Ao nos deslocarmos para o passado, esquecemos, por assim dizer, o presente e as coisas efervescentes e interessantes que ocorrem no aqui-agora. “Essa ocorrência silenciosa”, como dizia meu querido Manduka, ao me descrever o sentido do adágio popular: “pega pra capar!”.



E uma das coisas que permanecem nas grandes cidades, como um emblema de uma identidade urbana e cosmopolita, são as infinitas formas que se configuram os impulsos boêmios. E, no Rio de Janeiro, o botequim é o cenário privilegiado dessas “ocorrências silenciosas”... Bem, na verdade, quase nunca silenciosas, mas vale a licença poética para encaixar o adágio Mandukiano.



Sim, é triste ver, por exemplo, o velho pé-sujo Belmonte se transformar num arremedo do que foi no passado. Ver o suculento sanduíche de carne assada dar lugar a salgadinhos uniformes, produzidos em escala industrial fordista. Mas esses são meus olhos conservadores e, afinal, quem sou eu para dizer à multidão de jovens boêmios que se amontoam em seus balcões modernizados que eles estão errados, são alienados e inconseqüentes em suas opções de lazer etílico? Seria muita presunção, não é mesmo? Mas, por outro lado, posso lamentar, aqui no meu cantinho, a perda de certos modos e costumes de viver a boemia.



Mas também festejar certas mudanças, como ventos de boa renovação. Uma delas é a presença cada vez mais constante e efervescente das mulheres nos botequins da cidade. Espaço tipicamente masculino, reduto em que lamuriávamos, entre um copo e outro, nossos amores fracassados, contando com a cumplicidade de nossos pares, capazes de entender a dor do desencontro com o sexo oposto, pois também tinham, em algum momento passado pelo calvário amoroso: “Mulher é o cão!”, dizíamos amargurados.



Agora, nessas ondas de mudanças, eis que são elas que invadem nosso pedaço, trazendo um hibridismo interessante ao outrora reduto exclusivo masculino. E com elas, o amor deixa as retóricas amarguradas das conversas de botequim, para se transformar em encontros potencialmente reais. Ei-las ao nosso lado, no balcão, brindando à vida! Pois então que se cheguem e sejam bem-vindas.